29/07/13

Excerto de As Grandes Dionísias


Auto Questionário Proust-Neto

Dizem que estamos a entrar na silly season (como se ela não durasse o ano todo) e que é uma boa altura para responder a questionários de Verão. Como ninguém me pergunta nada, resolvi tomar a iniciativa e fazer-me uma auto-entrevista (género tão respeitável como outro qualquer) inspirada na versão do Questionário Proust inventada pelo Joel Neto. Tomei a liberdade de fazer pequenas alterações, porque quando entrevistamos alguém, a conversa flui e surgem ideias que não estavam no guião. Com a auto-entrevista não é muito diferente.

Porque decidiste tornar-te escritor? Foi só por vaidade?
Para já, só decidi escrever. Um dia talvez consiga tornar-me escritor.

Essa resposta foi muito politicamente correcta. Estás a armar-te em humilde?
Nada disso. É que a palavra «escritor» tem um peso enorme. Não te esqueças que eu só publiquei duas peças de teatro em livro e meia dúzia de textos dispersos. Se tiver mesmo de usar uma palavra para me definir enquanto ser escrevente, prefiro o anglicismo writer, que serve para qualquer pessoa que escreva não importa o quê

Como queiras. O que te levou então a querer escrever? Foi a vaidade?
Se eu quisesse armar-me em vaidoso, comprava um carro que desse nas vistas e passava o resto da vida a tentar pagá-lo. Se me perguntas o que me levou a querer escrever, confesso-te que não sei. Mas não me parece que seja a vaidade.

Continuando, então: qual foi a melhor frase que já escreveste?
Temo não ser a melhor pessoa para responder a isso.

Mau! Mas vais passar o resto da entrevista a desconversar?
 Eu avisei-te que isto não ia ser fácil.

Qual é a frase que mais lamentas não teres sido tu a escrever?
Entre as muitas escolhas possíveis, opto por um verso do Zeca Afonso: «Quando o pão que comes sabe a merda, o que faz falta?» É a prova de que não é preciso recorrer a palavras "bonitas" para escrever versos expressivos. Além disso, é uma frase bastante actual.

Quantas vezes, ao longo das últimas revisões de um texto, és assaltado pelo medo de morrer sem que o mundo possa usufruir da tua obra?
Tenho mais medo de morrer quando atravesso uma passadeira do que quando revejo um texto. Quando revejo um texto, tenho mais medo de deixar passar gralhas do que de morrer.

Já conseguiste perdoar-te pela publicação do primeiro livro?
Gosto do primeiro livro que publiquei e tenho a sorte de não ter conseguido publicar o primeiro que escrevi. Aliás, quero destrui-lo antes de morrer, não vá alguém achar que o mundo deve “usufruir” de tal obra.

Achas que vais arrepender-te também de publicar o próximo?
Rejo-me pelo princípio de nunca publicar nada que possa vir a envergonhar-me no futuro. Claro que posso estar enganado…

Que livro gostarias mesmo de escrever e sabes que não serás capaz?
Um best seller aclamado unanimemente pelos leitores e pela crítica.

Achas que as tuas melhores ideias se perderam por não teres podido anotá-las?
Eu anotei as melhores ideias, só não sei onde é que guardei as notas.

Que temas são absolutamente impossíveis de plasmar em literatura verdadeira?
Não sei o que é isso de literatura verdadeira.

Estamos outra vez a desconversar? Que temas são impossíveis de utilizar num livro?
Nenhum?

Que palavra tentas nunca usar num texto?
Tento não usar expressões batidas como “branca e fria como a neve” ou “escuro como breu”. Nos diálogos, tento que as personagens não digam palavras que desconhecem ou não estejam de acordo com as suas características. Mas, em princípio, não há palavras proibidas. E quando escrevo comédia, até posso ignorar as regras que acabei de enunciar, desde que consiga efeitos cómicos com isso.

Que palavra usarias para rimar com «amor»?
Tenho cara de dicionário de rimas?

Pronto! E que palavra nunca usarias para rimar com «amor»?
Empreendedor.

Quantas vezes, ao longo da tua juventude, disseste que Jane Austen era «uma merda»?
Nenhuma. Mas devo ter dito isso sobre o Pessoa ou o Eça, o que é só perdoável porque a adolescência é a fase ideal para dizer parvoíces.

Quantas vezes já mandaste a Jane Austen à merda por não conseguires escrever como ela?
Nunca me ocorreu escrever como a Jane Austen.

Como reages quando uma pessoa se zanga contigo por a teres usado como personagem?
Se tiver mesmo de usar pessoas reais para criar personagens, escolho pessoas que não gostem de ler os meus textos. Se algum dia for apanhado, farei como fez o Eça quando o acusaram de se inspirar em Bulhão Pato para criar o Tomás de Alencar: rogarei ao visado «o obséquio extremo de se retirar de dentro do meu  personagem».

Que livro mais gostarias de destruir? Por favor, não respondas Mein Kampf.
Sou pouco dado a destruir livros.

Qual a melhor primeira frase de um romance que tenhas lido?
«Chamem-me Ismael» Sim, eu sei que é um cliché, mas é a verdade, que queres que te diga?

E a última?
«E foram tomar xerez à Taverna Inglesa».

Os Lusíadas ou a Mensagem?
Os Lusíadas.

O Codex 632 ou Não Há Coincidências?
Não li nem tenciono ler nenhum deles. Mas também não tenciono destrui-los.

Um manuscrito desconhecido de Cesário Verde ou uma vitória do teu clube?
Um manuscrito do Cesário.

Quando é que vais ler um livro num iPad?
Quando alguém me oferecer um ou quando os preços descerem substancialmente.

Se soubesses que este inquérito era tão parvo (e tinha tantos palavrões), terias acedido a responder-lhe?
O pior é que eu conhecia o inquérito e acedi a responder-lhe sem ninguém me pedir.

Não estás já um bocadinho cansado da técnica da auto depreciação?
Estou muito cansado da auto depreciação, até porque nem isso faço bem.

Agora a sério: em que página desististe da Recherche?
Como ainda não comecei, tecnicamente ainda não desisti.

05/07/13

João Eduardo Ferreira escreve sobre «As Grandes Dionísias»

No princípio era o verbo. Se o evangelista João tem razão, essa razão vem da palavra dita, ouvida, dialogada. Pois antes, muito antes de Cristo e da palavra como dogma, está a palavra como ritual, como máscara, como interpretação. A palavra e o teatro nascem com a humanidade. Fazer teatro não é mentir, é compreender, é integrar. Luigi Pirandello, Peter Handke, Manuel Halpern escreveram teatro sobre teatro, a palavra sobre a palavra. Também Firmino Bernardo e Suzana Branco rescrevem a tragédia «As Bacantes» de Eurípides, estreada em 406 a.C., para entender um grupo de teatro amador em conflito com um encenador de haute culture: «Nunca tentaste compreender-nos», «E vocês, já tentaram compreender o que significa fazer teatro?». «Esqueçam-se de vocês e lembrem-se do espectáculo», põe ordem, finalmente, o Taberneiro, investido como actor, encenador, coro e «deus ex machina». A voz que, com humor e razão, vem salvar a cabeça de Penteu, a cegueira de Agave, as sete portas de Tebas, o futuro da palavra, a realidade do disfarce, a alegria do público. No princípio é, na verdade, o Teatro. E o teatro lido tem um sabor muito especial.
jef, julho 2013