20/11/11

Vasco Pulido Valente: Para Acabar de Vez com o Teatro



Na passada sexta-feira (18 de Novembro de 2011) saiu na última página do Público, um texto intitulado «Teatro à Portuguesa», da autoria de Vasco Pulido Valente. Fiquei intrigado, porque nunca pensei que VPV percebesse alguma coisa de teatro. De facto, não percebe. Todo o texto é uma sucessão mais ou menos intercalada de falácias, equívocos e falsidades, mas a cereja no topo do bolo é o último parágrafo, que passo a citar:

«Em 37 anos não apareceu uma única obra decente de dramaturgia portuguesa. Apareceram romances em grande quantidade, apareceu poesia, apareceram livros de história ou de memórias. Não apareceu uma única peça digna desse nome. Até o Teatro Nacional D. Maria II, na impossibilidade de se ficar eternamente no Frei Luís de Sousa, apresenta geralmente traduções. De resto, não lhe falta só dramaturgia portuguesa. Também lhe falta público. Uma noite no D. Maria é uma noite soturna. Francisco José Viegas cortou o orçamento (um milhão de euros) deste longo equívoco. Foi inteiramente justo. E, quando Diogo Infante resolveu recorrer à intimidação, não hesitou em o demitir. Chegou a altura de acabar com esta ridícula ilusão que em Portugal se chama "teatro".»

Vamos então analisar, parte por parte, este pedaço de demagogia refinada.

1. «Em 37 anos não apareceu uma única obra decente de dramaturgia portuguesa.» O homem até podia ter dito que não apareceu uma única obra-prima. Continuaria a ser discutível, mas não faltam pessoas ligadas ao teatro a dizer o mesmo. Podia dizer que não apareceu um bom texto para teatro. Continuaria a ser mentira, mas uma mentira um bocadinho menos vergonhosa. Mas não. O homem diz que não há obras "decentes". Nem uma única. Nada foi feito nos últimos 37 anos, que é o mesmo que dizer, depois do 25 de Abril de 74.

2. «Apareceram romances em grande quantidade, apareceu poesia, apareceram livros de história ou de memórias.» É a única verdade deste parágrafo, mas que serve apenas para realçar a mentira da inexistência de boas obras de teatro.

3. «Não apareceu uma única peça digna desse nome.» E volta-se ao mesmo, na velha esperança de que a repetição de uma mentira a torne verdade. Abel Neves, António Torrado, Mário de Carvalho, Luísa Costa Gomes, Carlos Alberto Machado, Margarida Fonseca Santos, Laureano Carreira, Armando Nascimento Rosa, Alice Vieira, Jaime Salazar Sampaio, Jorge Silva Melo, Cucha Carvalheiro, Yvette Centeno (para citar apenas alguns) - nenhuma destas pessoas escreveu, depois do 25 de Abril, uma peça "digna desse nome"? Até podemos acreditar que VPV as não conheça, mas querer fazer passar desconhecimento por verdades incontestáveis é desonestidade intelectual.

4. «Até o Teatro Nacional D. Maria II, na impossibilidade de se ficar eternamente no Frei Luís de Sousa, apresenta geralmente traduções.» Frei Luís de Sousa? Ó Vasco, mas afinal não existe uma peça de teatro há 37 anos ou desde 1844? Mas analisemos este "raciocínio". Quererá VPV dizer que um Teatro Nacional só deve apresentar textos estrangeiros em última instância? Então, os espectadores de um Teatro Nacional não têm direito a conhecer o que se faz fora do seu país, mesmo quando existem bons textos nacionais? Que visão tão paroquiana, Vasco!

5. «De resto, não lhe falta só dramaturgia portuguesa. Também lhe falta público. Uma noite no D. Maria é uma noite soturna.» Que o VPV não queira sair de casa e ir ao Rossio ver as peças que por lá se fazem, é compreensível. Mas que diabo, um historiador com obra publicada, que foi Secretário de Estado da Cultura, que escreve no Público (um jornal que muitos chamam "de referência"), não se dá ao trabalho de verificar números? É que eles mostram que o o público do TNDMII aumentou nos últimos anos! Noite soturna, Vasco?

6. É nestas falsidades que se apoia VPV para justificar que o corte no orçamento do TNDMII foi "inteiramente justo" («Francisco José Viegas cortou o orçamento (um milhão de euros) deste longo equívoco. Foi inteiramente justo. E, quando Diogo Infante resolveu recorrer à intimidação, não hesitou em o demitir.») Em Democracia, é natural a existência de opiniões diferentes sobre o mesmo assunto. Mas também é desejável que cada um se apoie em factos e argumentos para defender as suas opiniões. O que VPV nos demonstra aqui é a sua total incapacidade para defender os cortes de Francisco José Viegas sem manipular factos e sem recorrer a falácias. Porque será?

7. «Chegou a altura de acabar com esta ridícula ilusão que em Portugal se chama "teatro".» Esta frase diz tudo. É ignóbil e nojenta, mas tem uma qualidade: mostra, sem qualquer equívoco, qual é a verdadeira agenda de Vasco Pulido Valente e dos seus comparsas.

O Pesadelo (Micro Conto)

Deixem-me contar-vos o pesadelo que tive uma noite destas. Eu estava na rua, com milhares de pessoas, numa manifestação contra a política do governo. Estava a queixar-me do ministro das Finanças, quando toda gente parou. À minha volta, todos estavam calados e pareciam ter vergonha. À minha frente, só consegui ver as costas de um homem que usava um blazer azul (há muita gente a dizer que sonhamos a preto e branco, mas eu sonho a cores na mesma).

O homem voltou-se devagar: era o ministro das Finanças. Os olhos pareciam bocados de vidro, a cara não tinha expressão, ele olhava-me fixamente. À minha volta, toda a gente tinha desaparecido. Corri quanto pude e entrei num prédio com muitas escadas. Corri tanto pelas escadas acima, que se não fosse um sonho, tinha perdido mais de dez quilos.

Quando cheguei lá acima, só encontrei uma parede branca. Não havia nenhuma forma de fugir ou de me esconder. O ministro estava a chegar, lento mas seguro, com uma faca de metal na mão direita. Pelo menos, não discursou.

Eu sei que isto vai parecer-vos um deus ex machina, mas a verdade é que acordei nesse preciso momento. A manhã ainda era uma criança, a casa estava calada. Olhei para o despertador: eram quase horas de me levantar. Liguei o rádio para ouvir um bocadinho de música, mas em vez disso, ouvi as notícias - foi aí que percebi que continuo a ser perseguido pelo ministro das Finanças.